sexta-feira, 17 de julho de 2015

A VOZ

É tão suave ess'hora, 
Em que nos foge o dia, 
E em que suscita a Lua 
Das ondas a ardentia, 

Se em alcantis marinhos, 
Nas rochas assentado, 
O trovador medita 
Em sonhos enleado! 

O mar azul se encrespa 
Coa vespertina brisa, 
E no casal da serra 
A luz já se divisa. 

E tudo em roda cala 
Na praia sinuosa, 
Salvo o som do remanso 
Quebrando em furna algosa. 

Ali folga o poeta 
Nos desvarios seus, 
E nessa paz que o cerca 
Bendiz a mão de Deus. 

Mas despregou seu grito 
A alcíone gemente, 
E nuvem pequenina 
Ergueu-se no ocidente: 

E sobe, e cresce, e imensa 
Nos céus negra flutua, 
E o vento das procelas 
Já varre a fraga nua. 

Turba-se o vasto oceano, 
Com hórrido clamor; 
Dos vagalhões nas ribas 
Expira o vão furor, 

E do poeta a fronte 
Cobriu véu de tristeza; 
Calou, à luz do raio, 
Seu hino à natureza. 

Pela alma lhe vagava 
Um negro pensamento, 
Da alcíone ao gemido, 
Ao sibilar do vento. 

Era blasfema ideia, 
Que triunfava enfim; 
Mas voz soou ignota, 
Que lhe dizia assim: 

«Cantor, esse queixume 
Da núncia das procelas, 
E as nuvens, que te roubam 
Miríades de estrelas, 

E o frémito dos euros, 
E o estourar da vaga, 
Na praia, que revolve, 
Na rocha, onde se esmaga, 

Onde espalhava a brisa 
Sussurro harmonioso, 
Enquanto do éter puro 
Descia o Sol radioso, 

Tipo da vida do homêm, 
É do universo a vida: 
Depois do afã repouso, 
Depois da paz a lida. 

Se ergueste a Deus um hino 
Em dias de amargura; 
Se te amostraste grato 
Nos dias de ventura, 

Seu nome não maldigas 
Quando se turba o mar: 
No Deus, que é pai, confia, 
Do raio ao cintilar. 

Ele o mandou: a causa 
Disso o universo ignora, 
E mudo está. O nume, 
Como o universo, adora!» 

Oh, sim, torva blasfémia 
Não manchará seu canto! 
Brama a procela embora; 
Pese sobre ele o espanto; 

Que de sua harpa os hinos 
Derramará contente 
Aos pés de Deus, qual óleo 
Do nardo recendente.


Alexandre Herculano. A Harpa do Crente (1838)

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