sexta-feira, 31 de julho de 2015

CONSULTA

(A Alberto Sampaio) 

Chamei em volta do meu frio leito
as memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre meu peito...

E disse-lhes: - No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito...

Mas elas perturbaram-se - coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena...

E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: - Não, não valia a pena!

Antero de Quental. in "Sonetos"

quinta-feira, 30 de julho de 2015

A Uma Taça Feita de Um Crânio Humano

(Traduzido de BYRON)

Não recues! De mim não foi-se o espírito...
Em mim verás- pobre caveira fria -
Único crânio que, ao invés dos vivos,
Só derrama alegria.

Vivi! amei! bebi qual tu: Na morte
Arrancaram da terra os ossos meus.
Não me insultes! empina-me!... que a larva
Tem beijos mais sombrios do que os teus.

Mais val guardar o sumo da parreira
Do que ao verme do chão ser pasto vil;
-Taça - levar dos Deuses a bebida,
Que o pasto do reptil.

Que este vaso, onde o espírito brilhava,
Vá nos outros o espírito acender.
Ai! Quando um crânio já não tem mais cérebro
. . . Podeis de vinho o encher!

Bebe, enquanto inda é tempo! Uma outra raça,
Quando tu e os teus fordes nos fossos,
Pode do abraço te livrar da terra,
E ébria folgando profanar teus ossos.

E por que não? Se no correr da vida
Tanto mal, tanta dor ai repousa?
É bom fugindo à podridão do lado
Servir na morte enfim p'ra alguma coisa!. . .'


ALVES, Castro. Espumas flutuantes. in Poesias Completas. São Paulo : Ediouro, s.d. (Prestígio).

quarta-feira, 29 de julho de 2015

CANTO QUARTO

(...) Não faltava,
Para se dar princípio à estranha festa,
Mais que Lindóia. Há muito lhe preparam
Todas de brancas penas revestidas
Festões de flores as gentis donzelas.
Cansados de esperar, ao seu retiro
Vão muitos impacientes a buscá-la.
Estes de crespa Tanajura aprendem
Que entrara no jardim triste, e chorosa,
Sem consentir que alguém a acompanhasse.
Um frio susto corre pelas veias
De Caitutu, que deixa os seus no campo;
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca co'a vista, e teme de encontrá-la.
Entram enfim na mais remota, e interna
Parte de antigo bosque, escuro, e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins, e rosas.
Este lugar delicioso, e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindóia.
Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva, e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada, e irrite o monstro,
E fuja, e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitutu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira, e o temor. Enfim sacode
O arco, e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia, e fere
A serpente na testa, e a boca, e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açouta o campo co'a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento, e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime, e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado, e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!

(...)


In: GAMA, Basílio da. O Uraguai. Anot. Afrânio Peixoto, Rodolfo Garcia e Osvaldo Braga. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1941

Fonte: Escritas.org

terça-feira, 28 de julho de 2015

NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão 
não cabe no poema. O preço 
do arroz 
não cabe no poema. 
Não cabem no poema o gás 
a luz o telefone 
a sonegação 
do leite 
da carne 
do açúcar 
do pão 

O funcionário público 
não cabe no poema 
com seu salário de fome 
sua vida fechada 
em arquivos. 
Como não cabe no poema 
o operário 
que esmerila seu dia de aço 
e carvão 
nas oficinas escuras 

- porque o poema, senhores, 
   está fechado: 
   "não há vagas" 

Só cabe no poema 
o homem sem estômago 
a mulher de nuvens 
a fruta sem preço 

    O poema, senhores, 
    não fede 
    nem cheira 

Ferreira Gullar, in 'Antologia Poética' (1963)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

AMOR

Quand la mort est si belle,
Il est doux de mourir.

V. HUGO

Amemos! quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu’alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!

Quero em teus lábios beber
Os teus amores do céu!
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d’esperança!
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,
Minh’alma, meu coração...
Que noite! que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento,
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!



(Álvares de Azevedo)

domingo, 26 de julho de 2015

CANÇÃO DO EXÍLIO

Oh! mon pays sera mes amour
Toujours.

Chateaubriand

Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
– Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!

Oh que céu, que terra aquela,
Rica e bela
Como o céu de claro anil!
Que seiva, que luz, que galas,
Não exalas
Não exalas, meu Brasil!

Oh! que saudades tamanhas
Das montanhas,
Daqueles campos natais!
Daquele céu de safira
Que se mira,
Que se mira nos cristais!

Não amo a terra do exílio,
Sou bom filho,
Quero a pátria, o meu país,
Quero a terra das mangueiras
E as palmeiras,
E as palmeiras tão gentis!


Como a ave dos palmares
Pelos ares
Fugindo do caçador;
Eu vivo longe do ninho,
Sem carinho;
Sem carinho e sem amor!

Debalde eu olho e procuro...
Tudo escuro
Só vejo em roda de mim!
Falta a luz do lar paterno
Doce e terno,
Doce e terno para mim.

Distante do solo amado
– Desterrado –
A vida não é feliz.
Nessa eterna primavera
Quem me dera,
Quem me dera o meu país!


Lisboa –– 1855

ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. 

sábado, 25 de julho de 2015

Blog Concursos Literários: 05.08.2015 - 3º Festival de Haicai de Petrópolis

Blog Concursos Literários: 05.08.2015 - 3º Festival de Haicai de Petrópolis: Informações: a) Categorias: Infantil / Juvenil / Adulto / Adulto outras cidades b) Adulto outras cidades pode se inscrever pela internet ...

RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles 
(Obra poética, Volume 4, Biblioteca luso-brasileira: Série brasileira. Companhia J. Aguilar Editora, 1958, p. 10)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

VELHAS TRISTEZAS

Diluências de luz, velhas tristezas 
das almas que morreram para a luta! 
Sois as sombras amadas de belezas 
hoje mais frias do que a pedra bruta. 


Murmúrios incógnitos de gruta 
onde o Mar canta os salmos e as rudezas 
de obscuras religiões — voz impoluta 
de todas as titânicas grandezas. 

Passai, lembrando as sensações antigas, 
paixões que foram já dóceis amigas, 
na luz de eternos sóis glorificadas. 

Alegrias de há tempos! E hoje e agora, 
velhas tristezas que se vão embora 
no poente da Saudade amortalhadas! ...



Cruz e Sousa. Broquéis.

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br/>

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O EPITÁFIO QUE NÃO FOI GRAVADO

Todos sentiram quando a morte entrou
com um frêmito apressado de retardatária.
A que tinha de morrer, — a que a esperava, —
fechou os olhos
fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

Os que a choravam sabiam-na sem pecado,
consoladora dos aflitos,
boca de perdão e de indulgência,
corpo sem desejo,
voz sem amargor.

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados,
mas tranquilos...
Porque os que a choravam nunca saberiam
o rancor sem perdão de sua boca,
o desejo saciado de seu corpo,
o amargor de sua voz,
a sua angustia de arrastar até o fim a alma postiça que lhe
                                                                  [fizeram,
o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa,
a perfeição e o orgulho de pecar.

A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre
e os que a choravam
nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito
                            [à hora do exausto coração parar
o mais distante,
o mais imóvel,
o que não soluçou
o que não pôde erguer as pálpebras pesadas,
o que sentiu clamar no sangue o desespero de sobreviver,
o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário,
o que depós, sobre a serenidade da morte purificadora,
a redenção do silêncio,
como uma pedra votiva de sepulcro.


Felipe d’Oliveira

(Lanterna Verde – Edição de Pimenta de Melo e Cia. RJ, 1926. Pp. 66-69).

quarta-feira, 22 de julho de 2015

CHUVA DE PEDRA


O granizo salpica o chão como se as mãos das nuvens
quebrassem com estrondo um pedaço de gelo
para a salada de fruta dos pomares…

O cafezal, numa carreira alucinada,
grimpa as lombas de ocre
apedrejada matilha de cães verdes…

fremem, gotejam eriçadas suas copas
como pêlos de um animal todo molhado.

O céu é uma pedreira cor de zinco
onde estoura dinamite dos coriscos.

Rola de fraga em fraga a lasca retumbante
de um trovão.

Os riachos
correm com seus pés invisíveis e líquidos
para o abrigo das furnas. No terreiro,
as roupas penduradas nos varais
dançam, funambulescas, com as pedradas,
numa fila macabra de enforcados!


terça-feira, 21 de julho de 2015

A descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados
primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
as meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha.


Oswald de Andrade

(in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Os Dois Horizontes

1863
A M. Ferreira Guimarães

Dois horizontes fecham nossa vida:
Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.

Machado de Assis, in 'Crisálidas'
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. 
Publicado originalmente no Rio de Janeiro, por B.-L. Garnier, em 1864

domingo, 19 de julho de 2015

TROVA

Na Canção da Ribeirinha
e nas Cantigas de Amor
a trova segue certinha
consagrando o trovador



Luiz Carlos de Abreu Brandão
UBT-Maranguape/CE

Falando de Trova

sábado, 18 de julho de 2015

Aqui morava um rei

"Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão, 
Pedra da Sorte sobre meu Destino, 
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino, 
Quando ao som da viola e do bordão, 
Cantava com voz rouca, o Desatino, 
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado."



Ariano Suassuna: Fazenda Acahuan (lembranças de meu pai)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A VOZ

É tão suave ess'hora, 
Em que nos foge o dia, 
E em que suscita a Lua 
Das ondas a ardentia, 

Se em alcantis marinhos, 
Nas rochas assentado, 
O trovador medita 
Em sonhos enleado! 

O mar azul se encrespa 
Coa vespertina brisa, 
E no casal da serra 
A luz já se divisa. 

E tudo em roda cala 
Na praia sinuosa, 
Salvo o som do remanso 
Quebrando em furna algosa. 

Ali folga o poeta 
Nos desvarios seus, 
E nessa paz que o cerca 
Bendiz a mão de Deus. 

Mas despregou seu grito 
A alcíone gemente, 
E nuvem pequenina 
Ergueu-se no ocidente: 

E sobe, e cresce, e imensa 
Nos céus negra flutua, 
E o vento das procelas 
Já varre a fraga nua. 

Turba-se o vasto oceano, 
Com hórrido clamor; 
Dos vagalhões nas ribas 
Expira o vão furor, 

E do poeta a fronte 
Cobriu véu de tristeza; 
Calou, à luz do raio, 
Seu hino à natureza. 

Pela alma lhe vagava 
Um negro pensamento, 
Da alcíone ao gemido, 
Ao sibilar do vento. 

Era blasfema ideia, 
Que triunfava enfim; 
Mas voz soou ignota, 
Que lhe dizia assim: 

«Cantor, esse queixume 
Da núncia das procelas, 
E as nuvens, que te roubam 
Miríades de estrelas, 

E o frémito dos euros, 
E o estourar da vaga, 
Na praia, que revolve, 
Na rocha, onde se esmaga, 

Onde espalhava a brisa 
Sussurro harmonioso, 
Enquanto do éter puro 
Descia o Sol radioso, 

Tipo da vida do homêm, 
É do universo a vida: 
Depois do afã repouso, 
Depois da paz a lida. 

Se ergueste a Deus um hino 
Em dias de amargura; 
Se te amostraste grato 
Nos dias de ventura, 

Seu nome não maldigas 
Quando se turba o mar: 
No Deus, que é pai, confia, 
Do raio ao cintilar. 

Ele o mandou: a causa 
Disso o universo ignora, 
E mudo está. O nume, 
Como o universo, adora!» 

Oh, sim, torva blasfémia 
Não manchará seu canto! 
Brama a procela embora; 
Pese sobre ele o espanto; 

Que de sua harpa os hinos 
Derramará contente 
Aos pés de Deus, qual óleo 
Do nardo recendente.


Alexandre Herculano. A Harpa do Crente (1838)

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Eu

eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora


quem está por fora
não segura
um olhar que demora


de dentro de meu centro
este poema me olha


Paulo Leminski

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minhalma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar...


Mario de Sá-Carneiro. Poema extraído do livro Dispersão - 12 poesias. Edição do autor; Lisboa, 1914, publicado no site Gutenberg.Org.


Fonte:Escritas.org

terça-feira, 14 de julho de 2015

A parede, a sua vida

Devo-lhe ser este novembro custoso
como custaram-lhe as ingratas paciências
e o mês de agosto, não de menos, quando
tolos os meses se antecediam uns aos outros
antes embebia outras datas num só rolo
trouxe até a me pintar toda parede, e a parede
que afaga a colorir seus outros dedos
E suas datas mais próximas apetecem ou descansam
aos arredores da casa sua
a sua vida é besta, a sua vida é besta
e eu deitei-me sob ela
aos arredores da casa sua
a sua vida é besta, a sua vida resvala
escorrendo-me à cabeça
entornando pelas eiras
Se correr à calha a esta altura
a sua vida me aproveita, eu já sou outra parede
a minha vida é besta, a minha vida é besta.



Carolina Caetano (Minas Gerais)